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Início Especial Nise da Silveira: a alagoana que revolucionou a psiquiatria
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Uma mulher à frente de seu tempo, humana, corajosa e pioneira. Estamos falando de Nise da Silveira, a alagoana que revolucionou a psiquiatria com ideias e ideais, sendo contrária às técnicas agressivas praticadas com pacientes psiquiátricos na época e propondo novas formas de tratar que se baseiam, realmente, em cuidados, olhar sensível e atenção, por meio de um atendimento multidisciplinar e humanizado. 

“Nise representa, acima de tudo, a força de uma mulher à frente do seu tempo, seja pelo fato de ter sido uma das primeiras mulheres a se formarem em medicina no nosso país, enfrentando resistências da época de uma sociedade machista, patriarcal e manicomial, sendo pioneira no tratamento dos pacientes portadores de transtornos mentais para além das práticas médicas convencionais. Nise da Silveira era uma mulher de extrema sensibilidade, que enxergava além do óbvio, captando a potência das relações entre seres humanos e animais como medida terapêutica”, afirmou o psiquiatra Gustavo Omena.

A psiquiatra alagoana lutou contra técnicas desumanas, como o eletrochoque, lobotomia e choque insulínico, que deixavam os pacientes em estado de letargia, e criou formas humanizadas de tratamento, a exemplo da terapia ocupacional, que tem a arte como grande aliada, e do convívio com animais co-terapeutas.

“Nise é uma inspiração, embora minha história com a psiquiatria seja diferente da que ela teve na metade do século XX. Ela é uma inspiração como profissional de saúde mental, como ser humano e como alagoana. Ela teve a coragem de lutar por seus pacientes, quando, na época, a psiquiatria estava muito focada em tentar descobrir tratamentos para os transtornos mentais, ela enxergou os reais protagonistas da questão. Os seres humanos que sofriam não somente do transtorno, mas também do preconceito, da exclusão de direitos e do alienamento social. E lutou com um sorriso no rosto e muita garra para mudar isso. E conseguiu.”, disse o psiquiatra Marcos Farias. 

Um pouco da história de Nise 

Nascida em Maceió, capital alagoana, em 1905, Nise da Silveira cursou a Faculdade de Medicina da Bahia, aos 16 anos de idade, sendo a única mulher da turma. Um ano depois de se formar, em 1927, se mudou para o Rio de Janeiro, onde fez estágio na Faculdade de Medicina do Brasil. Em 1933, foi aprovada em um concurso público como médica psiquiatra da antiga Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental.

A história de Nise é marcada também por luta e resistência. Em 1936, ela foi presa pela Ditadura Vargas, sob a acusação de ser comunista. Demitida do serviço público, permaneceu um ano e meio na prisão. Em 1944, foi readmitida no serviço público, indo trabalhar no antigo Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro. Dois anos mais tarde, em 1946, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional. Em 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.

“Na escola viva que eram os ateliês de pintura e modelagem, a escola que eu frequentava cada dia, constantemente levantavam-se problemas. Dificuldades que conduziam a estudos apaixonantes e muitas vezes tornavam necessária a procura de ajuda fora do campo da psiquiatria – na arte, nos mitos, religiões, literatura, onde sempre encontraram formas de expressão as mais profundas emoções humanas”, contou Nise. 

Inquieta em busca de mais conhecimento, Nise escreveu uma carta a C. G. Jung, indagando sobre o simbolismo da mandala, em 1954. Até que iniciou o Grupo de Estudos C. G. Jung, em sua residência, em 1955. No ano seguinte, fundou a Casa das Palmeiras, clínica pioneira em reabilitação para egressos de hospitais psiquiátricos. Depois, iniciou os estudos no Instituto C. G. Jung de Zurich, na Alemanha.

“A configuração de mandala harmoniosa, dentro de um molde rigoroso, denotará intensa mobilização de forças autocurativas para compensar a desordem interna”, Nise da Silveira, em Museu de Imagens do Inconsciente (1981).

Nos anos 60, Nise se torna membro-fundadora da Société Internationale de Psychopathologie de l’Expression, com sede em Paris, na França. Oito anos mais tarde, criou o Grupo de Estudos do Museu de Imagens do Inconsciente. Em 1974, Nise participou da Fundação da Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, que se tornaria fundamental para a sobrevivência do Museu, aberto até os dias de hoje.

Em 1975, Nise se aposentou, mas não parou de contribuir com a psiquiatria e, portanto, com a humanidade. Em 1981, publicou o livro Imagens do Inconsciente, e, em 1992, lançou O mundo das Imagens. Falecida em 1999, o arquivo pessoal de Nise da Silveira recebeu o Registro Internacional do Programa Memória do Mundo da UNESCO, em 2017. 

“Nise da Silveira teve um papel decisivo, com impressionante sincronia, na história da psiquiatria e da arte brasileiras. Se introduziu métodos inovadores de relacionamento com os doentes, também possibilitou que a arte brasileira caminhasse numa direção originalíssima e impensável antes de sua aparição”, disse o poeta e crítico de arte, Ferreira Gullar. 

Inspiração

As atividades expressivas, frutos do trabalho de Nise da Silveira, deram origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, hoje o maior acervo do mundo no gênero. Por suas pesquisas e estudos, também surgiram exposições, cursos, simpósios, publicações e outras produções intelectuais, recebendo inúmeros prêmios, homenagens e títulos em diferentes áreas do saber. Seu trabalho antecedeu os movimentos de renovação da psiquiatria na Inglaterra (década de 1960), na Itália (década de 1970) e no Brasil (década de 1980).

“Através do seu trabalho, hoje é possível pensar na importância do cuidado multidisciplinar na vida dos pacientes portadores de transtornos mentais. Passamos a compreender o tratamento para além de medicações e condutas da época. Nise se utilizou das artes como forma de despertar e estimular o afeto dos pacientes, com terapia ocupacional para além da laborterapia, incluindo pintura e modelagem nas atividades dos doentes. O resultado? Aumento do vínculo da relação médico-paciente, tão importante no desfecho do resultado alcançado.”, acrescentou o psiquiatra Gustavo Omena.

“Acredito que existem duas dimensões nesse legado de Nise. Uma é a contribuição acerca dos estudos do inconsciente humano e de pessoas com transtornos mentais. Como ele se expressa através da arte e como esse processo contribui no tratamento dos indivíduos e para a integração deles com a comunidade ao seu redor. A outra dimensão de seu legado é de fundo humanístico. Visualizar a pessoa que tem algum adoecimento mental como um cidadão de direitos, tão importante para a sociedade, suas famílias e amigos quanto qualquer um. Alguém que, quando possui acesso ao cuidado adequado, continua a contribuir socialmente com a nossa cultura, nossos afetos e relações. A primeira lição que Nise nos deixou é a reflexão sobre para que servem os procedimentos e tratamentos que propomos para nossos pacientes. Eles devem ser usados para permitir o indivíduo ser ele mesmo, não para os disciplinar, controlar e punir. Uma lição que poderia ser aprendida por outras áreas, além da saúde mental. Além disso, suas técnicas possuem até hoje importância muito grande como parte do tratamento de pessoas com transtornos mentais graves. Na Terapia Ocupacional, ela trouxe a arte, o lúdico e o vínculo afetivo com os animais como formas eficazes de reabilitar a socialização, a afetividade e a funcionalidade dos pacientes. Isso é algo que, em muitos casos, até o tratamento convencional com medicações, não consegue alcançar. Nise da Silveira é no Brasil e no mundo uma personagem incontornável quando o assunto é olhar as pessoas para além da doença que possuem”, pontuou o psiquiatra Marcos Farias. 

Museu de Imagens do Inconsciente

Criado como um centro de estudo e pesquisa, o Museu de Imagens do Inconsciente, localizado no Rio de Janeiro, onde Nise atuou, cuida e divulga um importante patrimônio da humanidade, mantendo sempre as portas abertas a pesquisadores e ao público em geral. Seus Ateliês Terapêuticos recebem diariamente frequentadores que criam novos documentos plásticos e compartilham suas experiências no convívio com estudantes, pesquisadores ou visitantes. 

A produção desses ateliês resulta em obras de arte que revelam as riquezas interiores do ser humano, contribuindo para a mudança dos paradigmas estigmatizantes sobre os portadores de transtornos psíquico. A Reserva Técnica do museu guarda, organiza e conserva esta produção, reunida num acervo com mais de 400 mil obras entre telas, papéis, modelagens, textos e poemas. Entre os artistas, estão pacientes de Nise, como Fernando Diniz e Adelina Gomes.

“Fiquei impressionado com as pinturas dos esquizofrênicos brasileiros, pois elas apresentam, no primeiro plano, características habituais da pintura esquizofrênica, mas, noutros planos, a harmonia de formas e cores que não é habitual na pintura dos esquizofrênicos. Como é o ambiente onde esses doentes pintam? Suponho que trabalhem cercados de simpatia e de pessoas que não têm medo do inconsciente”, observou C. J. Jung, psiquiatra e fundador da Psicologia Analítica.

Psiquiatria pós-Nise

“Ser psiquiatra na terra de Nise da Silveira é poder se inspirar em uma história de vida de sucesso, entendendo o sucesso para além da fama, do prestígio, dos aplausos, mas sim da descoberta de uma vocação que impacta positivamente a vida daqueles que nos procuram. Isso é ter certeza de que estamos no caminho certo, seguindo o exemplo da nossa conterrânea que mudou a realidade da saúde mental no nosso país”, concluiu o psiquiatra Gustavo Omena.

“Ser psiquiatra em Alagoas e ter Nise como conterrânea é uma honra e um desafio ao mesmo tempo. Com Nise compartilho não só a profissão, como também fomos ambos criados no bairro de Bebedouro, em Maceió (não na mesma época, claro!). E tenho certeza que nossa cultura local foi essencial na construção da heroína da pátria que é hoje. Sua família sempre foi envolvida com a arte e eram patronos de manifestações culturais no bairro (ela era sobrinha do famoso Major Bonifácio da Silveira). No entanto, nosso estado sofre ainda com dificuldades para implementar um cuidado humanizado e universal para as pessoas com transtornos mentais, tanto na esfera pública quanto privada. Assim, Nise é uma referência também, no sentido de sua figura, ainda nos desafiar em sua terra natal a lutarmos por uma melhor qualidade de atendimento e direitos para nossos pacientes”, finalizou o psiquiatra Marcos Farias.

Dicas para conhecer mais Nise da Silveira

  • Exposição virtual Nise, A Revolução pelo Afeto, do CCBB do Rio de Janeiro / nisenoccbb.ccbb.com.br
  • Ocupação Nise da Silveira / itaucultural.org.br
  • Filme Nise: O Coração da Loucura (2015), dirigido por Roberto Berliner e estrelado pela atriz Glória Pires / youtube.com

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”, refletiu Nise da Silveira.


Imagens: ¹ Arquivo Nise da Silveira. ² Acervo da Fundação Biblioteca Nacional. ³ Hannah Copertino.

Sobre o autor
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Hannah Copertino

Jornalista, pós-graduada em assessoria de comunicação e marketing, possui experiências em telejornalismo e assessoria de comunicação. Eterna apaixonada pela natureza, arte e cultura, é alagoana de Maceió e uma das fundadoras do Desembarque Alagoas.
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