Por que mais um “Auto da Compadecida”? Esse foi um questionamento comum com a notícia de “O Auto da Compadecida 2”, que estreia neste Natal (25). Um dos filmes mais queridos do Brasil, inspirado pela obra do genial escritor Ariano Suassuna, o “Auto” é intocável para seus fãs. Será que uma continuação, 25 anos depois, não poderia estragar a magia?
Como um adorador da história, Matheus Nachtergaele, o João Grilo, falou ao g1 que compreende o receio. “Esse cuidado é muito bem-vindo”, diz. “O Auto não é só nosso, o Auto é de todos mesmo”.
Para João Suassuna, neto de Ariano, o novo filme é um presente e uma homenagem ao autor, que morreu em 2014. Na ausência dele, João revela que teve o aval de outra espectadora muito especial: dona Zélia, viúva de Ariano.
“O Auto da Compadecida 2” retoma a história de João Grilo e Chicó (Selton Mello) em Taperoá, no sertão da Paraíba. Assim como na vida real, 25 anos se passaram para a dupla, que agora entra na década de 1950. Eles testemunham o crescimento da rádio e as mudanças midiáticas e políticas na cidade nordestina, com referências a amor, cordel, resistência e fé.
A sequência é escrita por Guel Arraes, João Falcão, João Furtado e Adriana Falcão. Guel também retorna à direção do longa, ao lado de Flávia Lacerda. O elenco tem Virginia Cavendish (Rosinha) e adesões como Eduardo Sterblitch, Fabíula Nascimento, Luís Miranda, Humberto Martins e Taís Araújo como a Nossa Senhora.
Mas tudo volta aos protagonistas. “O Auto 2 virou um filme muito sobre a amizade do João Grilo e do Chicó. Eles abrem mão de tudo, dos seus valores, um pelo outro”, resume Nachtergaele.
O ator vê com emoção o seu retorno a João Grilo, que considera o maior personagem cômico da dramaturgia brasileira – e o seu “personagem áureo”. “Ter feito o João Grilo uma vez já valeria a minha estadia como ator no Brasil. E eu jamais macularia de alguma forma o meu personagem mais bonito”, garante.
Auto tecnológico
Parte de “O Auto da Compadecida” (2000) foi gravada na cidade de Cabaceiras, na Paraíba, e outra parte em um estúdio. Já o novo filme foi feito quase totalmente em um estúdio fechado e lança mão de mais tecnologias. Isso aumenta a sensação surrealista de “Auto 2”, mas causou estranhamento para fãs do primeiro filme já no trailer.
O uso de novas técnicas não é surpresa. Em 2019, quando Arraes já pensava no segundo filme, “O Auto da Compadecida” foi remasterizado e reexibido na Globo, com alterações – principalmente nos efeitos especiais da cena que mostra o céu e o inferno.
Nachtergaele também elogia esse aspecto do filme que, segundo ele, utiliza a tecnologia de “produções como Game of Thrones”. Para o ator, isso devolve “o aspecto teatral” a Suassuna, “de maneira surpreendente, e com uma tecnologia avançada que não tinha no Brasil [na época do primeiro filme]”.
A imortalidade de Ariano
“O Auto da Compadecida 2” chega aos cinemas 10 anos após a morte (“encantamento”, como descreve a família) de Ariano, mas parte de um projeto que o próprio autor deixou em vida. João conta que Ariano e Guel Arraes já haviam começado um “namoro criativo”, imaginando uma obra chamada “As Peripécias de João Grilo e Chicó”. As peripécias não se concretizaram, mas inspiraram Guel no novo filme.
Além disso, assim como o primeiro, “Auto da Compadecida 2” pega emprestado alguns elementos de outras obras de Ariano, como a “Farsa da Boa Preguiça” – e encontra na trajetória de Chicó, que agora é poeta, uma forma de representar o próprio escritor.
Um novo Brasil
Do livro de Ariano até as adaptações teatrais e a minissérie, “Auto da Compadecida” acabou criando uma relação íntima com o nosso país. Isso só aumentou com o primeiro filme, que estreou em um momento “honroso” do Brasil consigo mesmo, acredita Matheus.
Mas 25 anos depois, o país atravessou muitas ressignificações. E os temas de “Auto” – vida, morte, Brasil, religião… – já têm novas conotações.
Nachtergaele reforça que o momento é bom para a cultura nacional – como ficou provado com o sucesso de “Ainda Estou Aqui”, com o colega Selton Mello.
“A gente está de novo voltando a gostar da cultura brasileira, eu acho que tem esse movimento no ar acontecendo. Depois do susto da pandemia e por terem se acostumado a esperar tudo em casa, nos streamings, ou no celular, ou nos computadores, as pessoas pararam de ir ao cinema, e agora elas estão voltando também. E o Brasil reaproxima a carroça no sentido de uma sociedade que tenta ser um pouco mais igualitária”.
O ator considera que João Grilo simboliza isso para o Brasil: “A figura mundial – não é uma questão política, é social – da pessoa que está na mais baixa escala, mas que é muito legal, mas merece nossa atenção, nosso sorriso, e nossa comoção”.
“É quase como um lembrete, desde o ‘Auto 1’, e o ‘Auto 2’ também. Quando o capitalismo fica desenfreado, quando a extrema direita fica desenfreada demais, quando o ‘cada um por si’ fica desenfreado… a gente deixa para trás as pessoas mais lindas, como os ‘Joões’ Grilos e os Chicós”.